Opinião. Precisamos inventar novos rituais
"Longe do nosso território, como podemos, nós imigrantes, celebrarmos dezembro e o novo ano com ausências e vazios?"
Texto: Cristina Fontenele
Estar longe da família neste tempo festivo pode ser angustiante. A típica síndrome do fim de ano, a tal "dezembrite", vem reforçar o clima de saudosismo e melancolia que se apodera do imigrante. Na impossibilidade de encontro presencial, precisamos ser criativos e inventar novos rituais para cultivar a própria alegria e a sensação de afeto e lar em outro país.
Pode ser que você tenha vindo com seu núcleo familiar, pode ser que tenha migrado com o/a cônjuge e depois separaram-se, ou ainda que tenha vindo sozinho, vestido com a coragem dos iniciantes. Cada pessoa vai experienciar as “boas festas” a sua maneira.
No primeiro Natal que passei em Portugal, em 2018, ainda estava casada, resolvemos andar por Lisboa e procurar um restaurante para jantar. Desavisados, após uma longa caminhada, percebemos que tudo estava fechado, pois a data comemora-se em reuniões íntimas, com família e os mais chegados. Como todo o resto na Europa, o Natal também requer planejamento e antecedência.
De última hora, fomos acolhidos por uma colega brasileira e ceiamos em grupo com outros estrangeiros. O que seria da vida migrante sem a rede de apoio que se forma para suportar a nova trilha? Aquele Natal foi um dos primeiros contrastes de realidade em relação ao Brasil, onde sempre há comércio aberto, independente do dia e horário. Onde não se perde a oportunidade de gerar dinheiro, mesmo em detrimento dos trabalhadores e do espírito natalino.
No ano atual, muito se comentou nas redes sociais sobre regras para a boa convivência nas comemorações familiares. Para além de como se comportar nas confraternizações de trabalho, os especialistas listaram orientações para o âmbito pessoal: “Os 5 Não´s que todo mundo deveria saber no Natal”; “Saiba como evitar conflitos e questões inconvenientes”; “5 dicas para lidar com a família no Natal”; “Dicas para Natal sem tensões e brigas”; “Natal em família, sem confronto nem submissão”.
Ao mesmo tempo, outras notícias davam conta de pessoas que queriam ficar sozinhas em casa, mesmo sob o estigma de “desgarrado” ou antissocial, numa data que é considerada um grande momento de partilha. “Eles amam a família, mas querem passar o Natal sozinhos.”, anunciava uma das reportagens. Afinal, temos a obrigação de estar em grupo?
Estresse, conflitos, divergências políticas, longos deslocamentos, despesas, intromissões na vida alheia. Parece que estar em família pode ser um barril de pólvora. Nossa tolerância terá diminuído no pós-pandemia ou estamos mais sinceros?
Apesar das várias advertências e conselhos, tudo o que, supostamente, o imigrante gostaria é de estar em uma dessas reuniões acaloradas, com as pessoas falando ao mesmo tempo, uma mesa cheia de comida-memória, rodeada de parentes, amigos e agregados, atravessada pelo controverso amigo-secreto e brincadeiras a serem lembradas até o ano seguinte.
Longe do nosso território, como podemos, nós imigrantes, celebrarmos dezembro e o novo ano com ausências e vazios?
A filósofa brasileira, Lúcia Helena Galvão, explica em suas palestras e cursos que os rituais são protocolos de humanização, sem os quais a convivência em sociedade ficaria prejudicada ou até mesmo inviável. Os rituais ajudam a dar sentido ao cotidiano, a marcar a mudança de fases da vida, a criar memórias, sejam de conquistas ou de perdas.
Os rituais ajudam a processar e a significar as passagens do tempo. São pontes para a conexão com o outro e, sobretudo, conosco.
Entre os novos rituais de fim de ano que criei para mim, está a leitura de todas as anotações que registrei no meu “potinho da gratidão” ao longo dos doze meses. Realizei o processo na virada de 2023 para 2024, abrindo papel por papel, revivendo a alegria da altura. Depois queimei tudo em uma cumbuca, entregando ao vento minha felicidade. Pretendo repetir o ritual no final do próximo dia 31.
Na caminhada imigrante, e na vida em geral, revisar o quanto realizamos e conquistamos revigora o ânimo e a certeza de que os desafios estão valendo a pena.
Outro ritual que tenho seguido é o de espalhar sinais de afeto pela casa, demarcando as presenças e momentos “cheios” - de alegria, confiança, propósito. Fotos de amigos e família (a cada semana escolho a que ficarei olhando como apoio para os dias), além de pequenos objetos que recebi de presente. Tenho uma andorinha de porcelana e um móbile escrito “paz”, ambos recordações de amigas que me trazem força e a lembrança de continuar voando.
No Natal deste ano, preparei uma ceia com minha colega de casa equatoriana e o namorado dela cubano. Unimos os temperos e cada um contou como comemorava as festas em seu país. Já no Brasil, minha tia me liga de vídeo e passa o celular pela longa lista de outros tios, primos e crianças: “Feliz Natal!”, “Aí tá frio?” “Aqui tá pegando fogo!”. Depois, um grupo de amigas queridas liga para registrarmos a foto oficial do grupo. Reparo que há uma foto minha impressa e de outras duas amigas coladas na parede, junto à árvore de Natal. Faço pose e renovamos nosso registro anual, unidas, em qualquer continente.
Assim, atravesso mais um dezembro aprontando a alma para o próximo ano. E por aí, como estão os seus rituais?

Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.
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