Crônica: Como pertencer enquanto imigrante?
"Cultivar afetos, estabelecer outras redes de apoio, desenvolver novos relacionamentos, buscar ajuda das organizações sociais pode contribuir no processo de adaptação (...) Nesta ceia de Natal, vai trocar o peru pelo bacalhau ou incrementar a mesa com mais sabores?"
Texto: Cristina Fontenele
Outro dia, um dos espectadores de uma palestra questionou os oradores sobre por que os imigrantes, sobretudo os brasileiros, vivem em bolhas e não interagem com a cultura local. A pergunta em tom de crítica foi respondida com números sobre a imigração na Europa e a importância dessa população como mão de obra e reforço de natalidade. Mas afinal, qual a função de uma bolha?
Segundo a Biologia, uma bolha pode ser uma defesa do organismo para proteger determinada região do corpo. Na vida do imigrante, pode também funcionar como mecanismo de segurança, acolhimento e sensação de pertença. Estar com pessoas afins é um ponto de apoio em períodos de mudança.
O pertencimento, citando a conhecida pirâmide do psicólogo norte-americano Abraham Maslow, é uma das necessidades psicológicas de toda pessoa, uma vez que somos seres sociais e temos a demanda de fazer parte de um grupo, de amar e ser amado. Ser imigrante torna ainda mais evidente essa carência.
Cultivar afetos, estabelecer outras redes de apoio, desenvolver novos relacionamentos, buscar ajuda das organizações sociais pode contribuir no processo de adaptação.
Mas como sair da bolha e interagir com outra cultura para pertencer?
No estudo “Transmissão cultural entre pais e filhos: uma das chaves do processo de imigração”, as psicólogas Ivy Daure e Odile Reveyrand-Coulon falam sobre a relação da migração e interculturalidade. As diversas contradições entre a cultura do país de origem e a do país de adoção obrigam a família a construir estratégias de adaptação. O objetivo é reduzir tensões, moderar conflitos e a desorganização que decorrem de tamanha mudança de vida.
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De acordo com as pesquisadoras, nas famílias em que os pais falam da história migratória e das suas histórias pessoais no país de origem, as crianças podem circular de forma mais fluída entre as duas culturas, sentindo-se enraizadas e em segurança para evoluir na sociedade de acolhimento.
Ivy e Odile apontam quatro estratégias que o imigrante adota para lidar com as diferenças culturais:
- 1. Idealização do país de origem, sendo o exterior percebido como algo perigoso. “No meu país é muito melhor!”
- 2. Supervalorização da nova cultura, com rejeição ao país de origem. “Aqui é muito melhor do que lá!”
- 3. No espaço público, os comportamentos seguem os códigos do país atual e no espaço privado predominam as regras de conduta do país natal. “Dentro de casa é somente a nossa cultura de raiz.”
- 4. A família conserva alguns valores da sociedade de origem e substitui outros pelos da sociedade de adoção.
Nas famílias em que os pais falam da história migratória e das suas histórias pessoais no país de origem, as crianças podem circular de forma mais fluída entre as duas culturas, sentindo-se enraizadas e em segurança para evoluir na sociedade de acolhimento.
Cultivar afetos, estabelecer outras redes de apoio, desenvolver novos relacionamentos, buscar ajuda das organizações sociais pode contribuir no processo de adaptação.
Uma amiga brasileira que mora há nove anos e meio em Lisboa encontrou na Igreja, por exemplo, uma base forte de convivência e motivação. Ela veio com o marido e a filha para uma missão evangélica e, desde então, convive com várias nacionalidades.
Para interagir com a diversidade, essa amiga demonstra interesse pelas outras cultura, pelos hábitos e muda até a linguagem como uma maneira de demonstrar que se importa. Em sua experiência, percebe Portugal como um país receptivo. “Acho que, apesar de algumas poucas pessoas ainda serem preconceituosas, é um país que acolhe e respeita outras culturas.”
Já uma colega brasileira que atua na área da saúde está em Lisboa com a filha e o marido há um ano. Ela confessa que, por onde vai, ainda procura similaridades com a cultura do Brasil, seja na comida, seja nos ambientes. Com sua clientela, resiste à adaptação de certa palavras: não consegue falar “suba a anca, baixe o rabo”. Nestes dias, tem lamentado pela volta de uma parceira de trabalho ao próprio país. “Agora só estou eu de brasileira nesse local.” Entretanto, tem se permitido tomar um café semanal com pessoas de outras nações para criar novos relacionamentos.
E você, imigrante, que estratégias tem adotado para pertencer? Nesta ceia de Natal, vai trocar o peru pelo bacalhau ou incrementar a mesa com mais sabores?

Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.
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